quarta-feira, 17 de fevereiro de 2021

Peso na consciência ao final da tarde segundo Freud

 não sei porque tenho isso 

desde quando começo a me lembrar da minha vida 

toda vez que eu percebo o sol se pondo ao leste e o céu começa ficar avermelhado por completo 

sinto extremo peso na consciência 

como se estivesse deixando de fazer algo importante 

ou como se não tivesse feito algo importante naquele dia por Pura preguiça 

como se estivesse deixando algo para trás 

algo que eu jamais conseguiria recuperar depois 

esses dias me  peguei refletindo sobre como talvez isso tenha começado 

...e respeitando todas as normas e tratativas de Sigmund Freud…

eu percebi que esse meu gatilho também tem início na infância 

acho que a memória mais antiga de quando sentir algo similar ao remorso 

ou mesmo aquele pequeno peso na consciência 

foi por volta dos meus oito anos, em 1992 

eu estava na segunda série estava começando a escrever um pouco mais rápido aprendendo os macetes e isso estava enfeiando a minha letra por demais 

apenas um pequeno lembrete para os mais jovens 

naquela época existia a letra feita à mão e a máquina de escrever 

uma máquina mecânica e pesada cheia de processos complexos de alavanca sobe-desce e molas 

por dentro era praticamente um eletrodoméstico executivo 

poderia se ter em casa, não era assim tão absurdamente caro 

mas se você não fosse usar com o propósito específico de escrever corriqueiramente 

não valia sequer o investimento 

sendo assim, predominantemente se usava a escrita à mão nos lares da periferia 

eu mesmo lembro de ver apenas duas máquinas de escrever por aquelas épocas 

uma na escola onde eu estudava 

isso mesmo, apenas uma, e outra anos depois quando a minha prima mais velha teve o sonho adolescente de se tornar secretária 

e não sei como acabou conseguindo ter uma máquina de escrever em casa 

sendo assim, a letra feita manualmente era muito valorizada 

naquela época na escola eu bem que o grupo das meninas tinha uma letra bem bonita e caprichada em todos os seus cadernos 

os meninos, em sua grande maioria, tinham uma letra extremamente feia feita as pressas copiando a matéria do quadro para poder conversar sobre figurinhas do chicle da moda ou ou sobre o episódio de ontem do desenho animado da TV 

eu não tinha tanto essa afobação para escrever correndo e começar a conversa 

pois é lembrando agora, eu penso que sempre consegui fazer mais de uma coisa ao mesmo tempo 

e as conseguia fazer relativamente bem 

sendo assim, eu lembro certamente copiar a matéria do quadro e conseguir manter uma conversa 

exatamente isso, eu escreveria sobre o um assunto e falava sobre o outro ao mesmo tempo certamente eu tanto copiava errado quanto falava errado, mas tendo ser 8 anos, isso não é muito preocupante...

numa dessas noites quaisquer no meio do ano

lembro que era uma noite um pouco fria, ainda não era o ápice do inverno rigoroso na época, mas estava longe de ser uma noite de verão 

naquela época eu estudava pela manhã e ficava à tarde em casa vendo TV preto e branco Philco 17 polegadas 

ou ficava a tarde jogando bola no campinho na mesma quadra onde eu morava com todos os guris da vizinhança 

ou ficava a tarde correndo pelo vasto arvoredo frutífero que meu voo ostentava aos fundos do terreno onde eu morava

minha mãe chegava do serviço por volta das 18 horas 

lembro de toda a rotina naquela época 

ela chegava ia ao banho, dava uma breve arrumada na casa, arrumava a comida para esperar meu pai chegar do trabalho um pouco mais tarde 

nesse período de espera eu lembro que ela sempre olhava o meu caderno da escola  lembro também de tudo que eu poderia remontar a sala/cozinha em que vivemos perfeitamente na minha mente conturbada de agora 

eu lembro que tinha uma balcão da pia amarelo 

eu lembro que a pia em si era de mármore ou alguma outra pedra parecida 

era muito pesado 

lembro que a mesa o meu pai mesmo tinha feito uns anos antes com algumas tábuas que tinham sobrado de algum lugar 

lembro que nessa época nem sequer tinha um sofá 

e lembro que a TV ficava no alto 

a geladeira era pequena 

meu pai já a tinha comprado bem usada 

e eu também lembro do dia que ela chegou a nossa casa, mas isso tinha sido bem antes desse período 

então nesses dias clássicos de rotina repetitiva, quando minha mãe foi olhar o meu caderno à noite 

ela me chamou atenção pois quando eu escrevi o p minúsculo a "perninha" da letra que tava muito curta e ela parecia um “a” mal feito

eu lembro bem na resposta que eu dei a ela no momento 

disse que aquilo não tinha importância e a professora nem sequer tinha percebido 

como isso eu quis dizer que se não perdesse pontos, não tinha diferença 

acho que naquele momento eu estava olhando algo interessante na TV e não dei muita atenção…

...e a vida segue normal…

 logo depois, meu pai chegou do trabalho cansado 

já passava das 21 horas eu estava com fome 

pois aquele dia, como todos os outros de escola, eu acordava às 7 horas da manhã para não perder a hora 

depois das 21 horas já estava com fome e com vontade de comer e dormir 

meu pai chegava sem pressa ,contava todo o dia maldito dele, bebia umas duas doses de cachaça e só depois ia tomar banho para comer 

logo depois disso eu ia dormir e apagava rapidamente 

mas lembro que as poucas vezes que me estendi, ele fazia o mesmo 

sendo assim, a vida seguiu o seu rumo natural 

passaram-se alguns dias e, não lembro quantos 

provavelmente uns dois ou três meses, pois deveria ter passado todo inverno 

já estava uma noite quente no início do verão 

eu devo ter visto algo emocionante na televisão, alguma cena de filme ou novela 

e deve ter tocado no coração 

lembro que foi um dia totalmente atípico, pois a minha mãe deixou para tomar banho apenas na hora que ela foi para cama 

eu ainda ia ficar olhando tv um pouco 

provavelmente isso nem era dia de semana 

lembro quando ela voltou do banho até o cubículo onde a gente morava

nos fundos da casa dos meus avós maternos 

lembro bem de estar chorando copiosamente pois eu havia deixado para trás um erro 

sem conseguir consertar 

era aquela maldita frase que tinha três “p’s” errados 

do nada a lembrança daquilo me veio em mente naquele momento e eu queria revirar os cadernos antigos do começo do ano para conseguir arrumar 

a mãe tentou me acalmar dizendo que não tinha problema 

que aquilo já tinha passado 

mas eu fiquei insistindo para tentar arrumar o quanto antes 

eu sentia como se não fosse conseguir dormir com aquilo na mente 

fui revirar meus materiais escolares e consegui achar a frase 

nessa fase de estudante a escola insistia para que todos nós escrevêssemos lápis ainda 

o que facilitou e muito a correção naquele momento 

tarde da noite 

aquela noite eu consegui dormir tranquilo 

e eu fiquei preocupado com isso tendo apenas oito anos….

passou-se mais um tempo e minha rotina havia mudado um pouco 

pois como agora que eu estava velho, eu precisava de responsabilidades 

afinal, eu já faria 10 anos em poucos anos…

minha mãe disse que deixava tudo limpo e eu deveria limpar o mínimo que eu sujasse na casa 

isso se resume a uma pia de louça para lavar

devia haver dois ou três pratos, talheres, poucos copos e no máximo uma panela 

isso hoje em dia eu lavo em 3 minutos mas com 8 anos era bem mais complicado 

e eu lembro de ir deixando para depois

e para depois para depois 

todos os dias 

e quando chegava praticamente a hora na minha mãe entrar em casa 

depois de um dia de trabalho 

eu dava um jeito de lavar a louça correndo 

lembro que quebrei muitos pratos e potes de vidro que ela tinha na época 

e muitos eu conseguia colocar no lixo sem ela perceber 

ela ia dar falta daquele utensílio doméstico muito tempo depois 

e sempre achava que tinha emprestado para alguém e esquecido 

não sei como mas nunca me cortei nos cacos de vidro que eu juntara do chão com as mãos nuas 

e nem lembro onde os colocava para não ser encontrados, mas isso sempre funcionara com a chegada do inverno, foi então que eu comecei a sentir o remorso no final da tarde 

e era justamente o momento em que minha mãe estava chegando em casa 

a pia estava sempre cheia de louça 

passou-se os anos, nos mudamos inúmeras vezes, quando eu dos 15 anos... ou 16, algo assim 

lembro que minha mãe estava em casa quando eu ia estudar à noite 

eu saía de casa por volta das 18:30 

todas as tardes e eu lembro que eu estava na rua quando sentia o sol se pondo rapidamente eu sentia todo aquele remorso me corroendo 

sendo que eu não tinha deixado nada para trás daquele dia 

anos mais tarde, quando já estava trabalhando, lembro que nesse momento do dia eu estava era eu que estava chegando em casa do trabalho 

eu lembro realmente de chegar em casa apressado porque eu sentia que devia ter terminado algo antes do dia acabar 

nunca achava exatamente o que fazer 

passou ser mais alguns anos me casei, tive filho, lembro de buscar ele na escolinha nesse momento do final da tarde, após o meu dia de trabalho

lembro que muitas vezes eu achava que tinha esquecido algum material dele para trás 

pois sentia aquele mesmo remorso de sempre 

depois de um tempo me separei e fui morar no centro da cidade 

levando uma vida de solteiro jovem, com meus 27 anos  

naquele período da minha vida eu me encontrava perto de um grandioso cartão-postal da cidade 

que era justamente o pôr do sol 

lembro de ficar várias vezes tentando admirar o espetáculo da natureza com a minha namorada da época e alguns poucos amigos 

eu nunca conseguia desfrutar da maneira que eles faziam pois eu ficava ansioso 

sempre achando que tinha esquecido algo importante naquele dia…

anos mais tarde me casei pela segunda vez e essa sensação jamais mudou 

nesse período era hora de eu ir buscar meu enteado na escola 

tava andando pela rua escutando os meus fones de ouvido 

enquanto andava até escola que ele fazia turno integral 

me lembro perfeitamente de sentir a mesma coisa quase todas as tardes 

aquele remorso, peso na consciência 

lembro que eu levava ele para casa pendurado pela mão 

algumas vezes quase rebocando a criança, pois ele mesmo estava exausto depois de um dia inteiro na escola 

mas eu sentia que agarrando na mão dele aquela sensação de perda reduzira um pouco

mais alguns anos depois e voltei a morar na minha cidade 

depois de um trauma de quase morte, estava eu de volta morando na casa original da minha vida 

a mesma casa que meus avós tinham construído que eu teria morado até 11 anos 

lembro bem desse período da minha vida 

um dia, eu ainda estava traumatizado e tinha uma leve síndrome do pânico 

que muitas vezes o simples fato de sair na rua me fazia sentir a mesma sensação só que umas mil vezes pior 

todo final de tarde aquele leve remorso, sensação de perda viravam Pânico completo 

achei que os meses em que eu levei o guri para casa de mão dada comigo tinha me ajudado 

mas que ele período percebi que nada tinha mudado 

depois de mais de dois anos, consegui me recuperar um pouco naquele golpe da vida 

a síndrome do pânico e crise de ansiedade que eu reduzido quase 100% 

percebi que tinha ficado vários meses sem ter aquele remorso no fim da tarde 

naquela época da vida eu ia toda sexta-feira para casa da minha namorada na outra cidade bem distante 

fazíamos exercícios e curtimos a vida 

bebendo e transando muito 

ela me contaminava com a jovialidade que ela tinha 

quando terminamos nosso namoro lembro de uma sexta-feira ficar sentado em frente à casa 

eu estava sentado na mesma cadeira de praia que meu avô usou durante muitos anos para tomar chimarrão na sombra em frente ao terreno onde ele morava 

eu estava ali sentado, jogado na cadeira, tomando uma cerveja gelada no final de um dia quente de trabalho

quando senti o sol se pôr a sensação veio mais forte do que nunca 

o término recente da relação tinha ajudado isso a se fortalecer

passaram-se mais alguns anos fui morar no meu apartamento sozinho 

quando a vida parecia estar se realizando veio a pandemia Mundial que deixou tudo planeta trancado dentro de casa 

isso as pessoas que têm sorte de ter uma casa 

eu ficava lendo a tarde toda sentado no chão do quarto 

eu ia até o sol se pôr 

e eu não conseguir fazer mais nada sem acender a luz 

sempre odiei a luz artificial 

sempre preferi usar a luz do sol durante o dia para fazer qualquer coisa que precisasse de uma visão mais aguçada 

e na noite prefiro repousar minhas córneas 

isso até pode ter dado um bom resultado 

pois na minha idade, todo o resto da minha família, já usa óculos 

e eu, por enquanto, ainda não precisei 

nesse período de pandemia, ao ver o Pôr do Sol quase todos os dias 

eu estava sempre sozinho, até um pouco desconectado do mundo 

para eu mesmo conseguir relaxar em frente à todo aquele momento tenso em que a humanidade estava passando 

eu achava realmente que o mundo ia acabar 

aquele momento ao menos parte da humanidade ia realmente sumir 

uma parte significativa... 

lembrando que já morreram muitos e muitas dessa praga atual, mas na minha inocência cinematográfica mental

achei que seria numericamente mais

foi nesse período da vida que eu fiquei refletindo sobre o remorso que sentia todo dia no pôr do sol 

percebi de onde tinha vindo, pois eu lembrava daqueles três “p’s” maus escritos no caderno

como tudo é simplificado pelas teorias de Sigmund Freud 

se minha mãe não tivesse me chamado atenção por aquilo naquela vez, 

provavelmente o pôr do sol seria um outro significado na minha vida 

a culpa sempre é da nossa mãe


Nenhum comentário:

Postar um comentário