não sei porque tenho isso
desde quando começo a me lembrar da minha vida
toda vez que eu percebo o sol se pondo ao leste e o céu começa ficar avermelhado por completo
sinto extremo peso na consciência
como se estivesse deixando de fazer algo importante
ou como se não tivesse feito algo importante naquele dia por Pura preguiça
como se estivesse deixando algo para trás
algo que eu jamais conseguiria recuperar depois
esses dias me peguei refletindo sobre como talvez isso tenha começado
...e respeitando todas as normas e tratativas de Sigmund Freud…
eu percebi que esse meu gatilho também tem início na infância
acho que a memória mais antiga de quando sentir algo similar ao remorso
ou mesmo aquele pequeno peso na consciência
foi por volta dos meus oito anos, em 1992
eu estava na segunda série estava começando a escrever um pouco mais rápido aprendendo os macetes e isso estava enfeiando a minha letra por demais
apenas um pequeno lembrete para os mais jovens
naquela época existia a letra feita à mão e a máquina de escrever
uma máquina mecânica e pesada cheia de processos complexos de alavanca sobe-desce e molas
por dentro era praticamente um eletrodoméstico executivo
poderia se ter em casa, não era assim tão absurdamente caro
mas se você não fosse usar com o propósito específico de escrever corriqueiramente
não valia sequer o investimento
sendo assim, predominantemente se usava a escrita à mão nos lares da periferia
eu mesmo lembro de ver apenas duas máquinas de escrever por aquelas épocas
uma na escola onde eu estudava
isso mesmo, apenas uma, e outra anos depois quando a minha prima mais velha teve o sonho adolescente de se tornar secretária
e não sei como acabou conseguindo ter uma máquina de escrever em casa
sendo assim, a letra feita manualmente era muito valorizada
naquela época na escola eu bem que o grupo das meninas tinha uma letra bem bonita e caprichada em todos os seus cadernos
os meninos, em sua grande maioria, tinham uma letra extremamente feia feita as pressas copiando a matéria do quadro para poder conversar sobre figurinhas do chicle da moda ou ou sobre o episódio de ontem do desenho animado da TV
eu não tinha tanto essa afobação para escrever correndo e começar a conversa
pois é lembrando agora, eu penso que sempre consegui fazer mais de uma coisa ao mesmo tempo
e as conseguia fazer relativamente bem
sendo assim, eu lembro certamente copiar a matéria do quadro e conseguir manter uma conversa
exatamente isso, eu escreveria sobre o um assunto e falava sobre o outro ao mesmo tempo certamente eu tanto copiava errado quanto falava errado, mas tendo ser 8 anos, isso não é muito preocupante...
numa dessas noites quaisquer no meio do ano
lembro que era uma noite um pouco fria, ainda não era o ápice do inverno rigoroso na época, mas estava longe de ser uma noite de verão
naquela época eu estudava pela manhã e ficava à tarde em casa vendo TV preto e branco Philco 17 polegadas
ou ficava a tarde jogando bola no campinho na mesma quadra onde eu morava com todos os guris da vizinhança
ou ficava a tarde correndo pelo vasto arvoredo frutífero que meu voo ostentava aos fundos do terreno onde eu morava
minha mãe chegava do serviço por volta das 18 horas
lembro de toda a rotina naquela época
ela chegava ia ao banho, dava uma breve arrumada na casa, arrumava a comida para esperar meu pai chegar do trabalho um pouco mais tarde
nesse período de espera eu lembro que ela sempre olhava o meu caderno da escola lembro também de tudo que eu poderia remontar a sala/cozinha em que vivemos perfeitamente na minha mente conturbada de agora
eu lembro que tinha uma balcão da pia amarelo
eu lembro que a pia em si era de mármore ou alguma outra pedra parecida
era muito pesado
lembro que a mesa o meu pai mesmo tinha feito uns anos antes com algumas tábuas que tinham sobrado de algum lugar
lembro que nessa época nem sequer tinha um sofá
e lembro que a TV ficava no alto
a geladeira era pequena
meu pai já a tinha comprado bem usada
e eu também lembro do dia que ela chegou a nossa casa, mas isso tinha sido bem antes desse período
então nesses dias clássicos de rotina repetitiva, quando minha mãe foi olhar o meu caderno à noite
ela me chamou atenção pois quando eu escrevi o p minúsculo a "perninha" da letra que tava muito curta e ela parecia um “a” mal feito
eu lembro bem na resposta que eu dei a ela no momento
disse que aquilo não tinha importância e a professora nem sequer tinha percebido
como isso eu quis dizer que se não perdesse pontos, não tinha diferença
acho que naquele momento eu estava olhando algo interessante na TV e não dei muita atenção…
...e a vida segue normal…
logo depois, meu pai chegou do trabalho cansado
já passava das 21 horas eu estava com fome
pois aquele dia, como todos os outros de escola, eu acordava às 7 horas da manhã para não perder a hora
depois das 21 horas já estava com fome e com vontade de comer e dormir
meu pai chegava sem pressa ,contava todo o dia maldito dele, bebia umas duas doses de cachaça e só depois ia tomar banho para comer
logo depois disso eu ia dormir e apagava rapidamente
mas lembro que as poucas vezes que me estendi, ele fazia o mesmo
sendo assim, a vida seguiu o seu rumo natural
passaram-se alguns dias e, não lembro quantos
provavelmente uns dois ou três meses, pois deveria ter passado todo inverno
já estava uma noite quente no início do verão
eu devo ter visto algo emocionante na televisão, alguma cena de filme ou novela
e deve ter tocado no coração
lembro que foi um dia totalmente atípico, pois a minha mãe deixou para tomar banho apenas na hora que ela foi para cama
eu ainda ia ficar olhando tv um pouco
provavelmente isso nem era dia de semana
lembro quando ela voltou do banho até o cubículo onde a gente morava
nos fundos da casa dos meus avós maternos
lembro bem de estar chorando copiosamente pois eu havia deixado para trás um erro
sem conseguir consertar
era aquela maldita frase que tinha três “p’s” errados
do nada a lembrança daquilo me veio em mente naquele momento e eu queria revirar os cadernos antigos do começo do ano para conseguir arrumar
a mãe tentou me acalmar dizendo que não tinha problema
que aquilo já tinha passado
mas eu fiquei insistindo para tentar arrumar o quanto antes
eu sentia como se não fosse conseguir dormir com aquilo na mente
fui revirar meus materiais escolares e consegui achar a frase
nessa fase de estudante a escola insistia para que todos nós escrevêssemos lápis ainda
o que facilitou e muito a correção naquele momento
tarde da noite
aquela noite eu consegui dormir tranquilo
e eu fiquei preocupado com isso tendo apenas oito anos….
passou-se mais um tempo e minha rotina havia mudado um pouco
pois como agora que eu estava velho, eu precisava de responsabilidades
afinal, eu já faria 10 anos em poucos anos…
minha mãe disse que deixava tudo limpo e eu deveria limpar o mínimo que eu sujasse na casa
isso se resume a uma pia de louça para lavar
devia haver dois ou três pratos, talheres, poucos copos e no máximo uma panela
isso hoje em dia eu lavo em 3 minutos mas com 8 anos era bem mais complicado
e eu lembro de ir deixando para depois
e para depois para depois
todos os dias
e quando chegava praticamente a hora na minha mãe entrar em casa
depois de um dia de trabalho
eu dava um jeito de lavar a louça correndo
lembro que quebrei muitos pratos e potes de vidro que ela tinha na época
e muitos eu conseguia colocar no lixo sem ela perceber
ela ia dar falta daquele utensílio doméstico muito tempo depois
e sempre achava que tinha emprestado para alguém e esquecido
não sei como mas nunca me cortei nos cacos de vidro que eu juntara do chão com as mãos nuas
e nem lembro onde os colocava para não ser encontrados, mas isso sempre funcionara com a chegada do inverno, foi então que eu comecei a sentir o remorso no final da tarde
e era justamente o momento em que minha mãe estava chegando em casa
a pia estava sempre cheia de louça
passou-se os anos, nos mudamos inúmeras vezes, quando eu dos 15 anos... ou 16, algo assim
lembro que minha mãe estava em casa quando eu ia estudar à noite
eu saía de casa por volta das 18:30
todas as tardes e eu lembro que eu estava na rua quando sentia o sol se pondo rapidamente eu sentia todo aquele remorso me corroendo
sendo que eu não tinha deixado nada para trás daquele dia
anos mais tarde, quando já estava trabalhando, lembro que nesse momento do dia eu estava era eu que estava chegando em casa do trabalho
eu lembro realmente de chegar em casa apressado porque eu sentia que devia ter terminado algo antes do dia acabar
nunca achava exatamente o que fazer
passou ser mais alguns anos me casei, tive filho, lembro de buscar ele na escolinha nesse momento do final da tarde, após o meu dia de trabalho
lembro que muitas vezes eu achava que tinha esquecido algum material dele para trás
pois sentia aquele mesmo remorso de sempre
depois de um tempo me separei e fui morar no centro da cidade
levando uma vida de solteiro jovem, com meus 27 anos
naquele período da minha vida eu me encontrava perto de um grandioso cartão-postal da cidade
que era justamente o pôr do sol
lembro de ficar várias vezes tentando admirar o espetáculo da natureza com a minha namorada da época e alguns poucos amigos
eu nunca conseguia desfrutar da maneira que eles faziam pois eu ficava ansioso
sempre achando que tinha esquecido algo importante naquele dia…
anos mais tarde me casei pela segunda vez e essa sensação jamais mudou
nesse período era hora de eu ir buscar meu enteado na escola
tava andando pela rua escutando os meus fones de ouvido
enquanto andava até escola que ele fazia turno integral
me lembro perfeitamente de sentir a mesma coisa quase todas as tardes
aquele remorso, peso na consciência
lembro que eu levava ele para casa pendurado pela mão
algumas vezes quase rebocando a criança, pois ele mesmo estava exausto depois de um dia inteiro na escola
mas eu sentia que agarrando na mão dele aquela sensação de perda reduzira um pouco
mais alguns anos depois e voltei a morar na minha cidade
depois de um trauma de quase morte, estava eu de volta morando na casa original da minha vida
a mesma casa que meus avós tinham construído que eu teria morado até 11 anos
lembro bem desse período da minha vida
um dia, eu ainda estava traumatizado e tinha uma leve síndrome do pânico
que muitas vezes o simples fato de sair na rua me fazia sentir a mesma sensação só que umas mil vezes pior
todo final de tarde aquele leve remorso, sensação de perda viravam Pânico completo
achei que os meses em que eu levei o guri para casa de mão dada comigo tinha me ajudado
mas que ele período percebi que nada tinha mudado
depois de mais de dois anos, consegui me recuperar um pouco naquele golpe da vida
a síndrome do pânico e crise de ansiedade que eu reduzido quase 100%
percebi que tinha ficado vários meses sem ter aquele remorso no fim da tarde
naquela época da vida eu ia toda sexta-feira para casa da minha namorada na outra cidade bem distante
fazíamos exercícios e curtimos a vida
bebendo e transando muito
ela me contaminava com a jovialidade que ela tinha
quando terminamos nosso namoro lembro de uma sexta-feira ficar sentado em frente à casa
eu estava sentado na mesma cadeira de praia que meu avô usou durante muitos anos para tomar chimarrão na sombra em frente ao terreno onde ele morava
eu estava ali sentado, jogado na cadeira, tomando uma cerveja gelada no final de um dia quente de trabalho
quando senti o sol se pôr a sensação veio mais forte do que nunca
o término recente da relação tinha ajudado isso a se fortalecer
passaram-se mais alguns anos fui morar no meu apartamento sozinho
quando a vida parecia estar se realizando veio a pandemia Mundial que deixou tudo planeta trancado dentro de casa
isso as pessoas que têm sorte de ter uma casa
eu ficava lendo a tarde toda sentado no chão do quarto
eu ia até o sol se pôr
e eu não conseguir fazer mais nada sem acender a luz
sempre odiei a luz artificial
sempre preferi usar a luz do sol durante o dia para fazer qualquer coisa que precisasse de uma visão mais aguçada
e na noite prefiro repousar minhas córneas
isso até pode ter dado um bom resultado
pois na minha idade, todo o resto da minha família, já usa óculos
e eu, por enquanto, ainda não precisei
nesse período de pandemia, ao ver o Pôr do Sol quase todos os dias
eu estava sempre sozinho, até um pouco desconectado do mundo
para eu mesmo conseguir relaxar em frente à todo aquele momento tenso em que a humanidade estava passando
eu achava realmente que o mundo ia acabar
aquele momento ao menos parte da humanidade ia realmente sumir
uma parte significativa...
lembrando que já morreram muitos e muitas dessa praga atual, mas na minha inocência cinematográfica mental
achei que seria numericamente mais
foi nesse período da vida que eu fiquei refletindo sobre o remorso que sentia todo dia no pôr do sol
percebi de onde tinha vindo, pois eu lembrava daqueles três “p’s” maus escritos no caderno
como tudo é simplificado pelas teorias de Sigmund Freud
se minha mãe não tivesse me chamado atenção por aquilo naquela vez,
provavelmente o pôr do sol seria um outro significado na minha vida
a culpa sempre é da nossa mãe
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