quarta-feira, 25 de julho de 2018

Era tudo mato

Quarta-feira
Cheguei cansado do serviço
São dias muito chuvosos
Parece que por algumas horas teremos uma trégua
Chego em casa depois de 14 km de bike com capa de chuva-sem chuva
Lava de suor
Banho
Laveintudo que podia ser lavado
Me vesti
Fui conversar com minha mãe
Ela estava tomando chimarrão com minha tia nos fundos
Fui lá
Conversei por 10 mins
Acabou o assunto
Voltei pro quarto
Estou com fome
Por estar engordando e por pedalar 14 km
Preciso ir ao mercado
Me vesti e fui
Só tem duas ruas pra ir e voltar do mercado
Fui pela átipica
Deserta como todas ao cair do sol
Fui indo e tomando uma lata de cerveja bem gelada
É uma noite fria e eu ando com o casaco aberto
Toda essa umidade depois de tanta chuva ate me faz bem
Gosto do frio
Gosto dele passando por mim
Me sinto muito mais parte da natureza do que da humanidade com isso
Sinto como se eu fosse uma árvore ambulante
Vagando pelas ruas
Sentindo a natureza em mim
E eu nela
E sigo pela rua em passos lentos
Vem vindo um homem do mesmo lado da tua que eu
Velho
Guarda-chuvas em mãos
Jaqueta jeans
Talvez botas, não observei os pés
Fixei no rosto e na barba branca
Reconheci ele
Ênio
Oficialmente meu primeiro chefe na metal-mecânica
Ele teve uma oficina de tratores e máquinas grandes
Eu tinha a pouco completado 18 anos
Cortei o cabelo pra conseguir aquela vaga que durou poucos meses
Outras histórias...
Lá estava o velho Ênio
Pai de um colega meu da escola
Escola a qual estudou toda a vizinhança
Depois ele se tornou meu amigo
De muitas fases
Depois me casei e ele foi um dos poucos que me visitava
Depois ele foi padrinho (sem batismo na igreja) do meu filho
Coisa que ele nunca deu bola
E depois sumiu na poeira do tempo
Sei onde ele mora
Ele me visitou após a facada
Temos o telefone um do outro
E nao falamos nada
Vi o pai dele na rua por acaso
Mais velho do que eu lembrava
Mais curvado
Bem cego pela diabetes
Mal me reconheceu bem de perto
Trocamos algumas frases
"Como vai?"
"E o filho?"
E seguimos nosso caminho
Eu ao mercado e ele a casa enorme que ele mora, agora, sozinho
Pensei em quantas coisas vivi com ele em poucos meses
Mas só tem um fato que eu lembro com grandeza
Entre tantos que me formaria minha profissão e meu ganha-pão
Lembro que nossa turma da escola
Eu, o gordo (Rafael, filho do tal Ênio) e o Daniel (meu amigo desde os 9 anos)
Todos trabalhamos alí na "E. P. Maq serviçoa" do Ênio
O Daniel um dia me contou que viu o Ênio tomando café da manhã
Pegava um pão velho e mergulhava num copo de cerveja
Antes das 8 da manhã
Isso durante anos foi nosso assunto
E lembrei que a pouco tempo fizemos um churrasco com amigos da antigas e o nome "pai do gordo" foi citado
O próprio Daniel ergueu um brinde ao Deus que conhecemos vivo
Ênio
Bebia cerveja no café da manhã
...
Vi ele na rua e segui meu caminho
Mercado
Vi um conhecido da antiga
Trocamos algumas frases mas lembrávamos pouco um do outro
O papo foi deprimente
Acabou
Peguei o que queria
Bananas, bolachas e carne
Fui ao caixa
Estranhei quandoa caixa me perguntou se era débito ou crédito
Óbvio
Eu  vou lá as vezes
Ela tem dezenas de clientes por dia
Passou o gerente e eu o reconheci
Paguei
Coloquei tudo na mochila
Abri mais uma lata e fui voltando pelo mesmo caminho
Fui andando por uma rua onde antes não havia nada
Fiquei fazendo ligações entre o passado e hoje
No ambiente
Onde havia a "Metalúrgica Ironman" há im salão de festas
Passei por uma casa a venda que já conheci 3 famílias que moravam alí
Passou um homem do outro lado da rua
Eu conheço ele
Foi cobrador da empresa de ônibus ds cidade
Estudei uns 3 anos com a filha dele
Sei que ela casou 2 vezes e teve 1 filho
Nada mais
Fui andando
Reconheci árvores
Paróquia
Dobrei a esquina
Naquela esquina tem um prédio de 2 andares acima do térreo
Moravam o Leandro e a Aline
Irmãos
Eu sonhei em namorar a Aline e ser o Leandro
Eles eram repetentes
Mais velhos
Estudei com os 2 irmãos nunca mais os vi depois dos meus (talvez) 12 ou 13 anos
Lembro até da mesa riscada do Leandro na sala de aula
Segui andando pela rua
Lembrei da casa que tinha o cachorro mais bravo de todos
Íamos pra escola e ele nos avançava
Ele certamente mordeu muitos estudantes da minha idade a uns 20 anos atrás
Passei pelas casa de aluguel onde morava a costureira que fez minha calça da capoeira, quando eu tinha 8 anos
Lembrei do ciclista fdp
Ele arrumava um lado da bike e estragava outro
Segui a rua
Lembro de um casal que teve 2 filhas
Talvez ainda morem ali
Esquina dos pais do Marcelo que plantam na calçada
Passei pela esquina do amigo da minha vida, que hoje faz questão de me ignorar se me ver na rua
Fiquei vendo tudo e relembrando como era antes
Fui subindo a lomba onde moro
Que foi a casa onde fui morar ainda bebê  de meses
A rua era de terra
As árvores tomavam a rua
Lembro dos 3 postes na rua
Mais de 200 mtrs entre um e outro
Uma profunda treva entre uma luz e outra
Lembro dos buracos na terra da rua
Lembro de bobagens assim
Besteiras que nem fazem diferença
Subo a lombra e lembro de quando tudo era coberto por mato
Essa é uma frase típica de quem fica velho na minha região
"Isso antes era tudo mato..."
Vou subindo e pensando nisso
Lembro da casa que pegou fogo
Vou lembrando da época da terra de rua
A doença que assolava o país era a cólera
Transmitida pela água suja
Água suja
E hoje reclamamos se o asfalto está irregular
E reclamamos com razão
Saímos disso
Mas saímos de tudo isso pq fomos forte e sobrevivemos a tudo isso
Pensei que durante anos eu fugi dessa cidade
Desse canto do mundo
E hoje eu passo pela rua e me emociono apenas de lembrar do meu passado por essas ruas
Lacrimejo pensando nisso
E penso que o velho assume a idade não quando fala que "era tudo mato"
Fica velho quem lembra do passado e se emociona

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